domingo, 30 de dezembro de 2012

PALESTRA


O currículo no SOME e a prática docente
 Renilton Cruz ministra a palestra: "O curriculo no SOME e a prática docente

O
 professor-doutor Renilton Cruz ficou encarregado de ministrar a palestra “O currículo no SOME e a prática docente”, durante a realização do I Encontro do SOME Pará/Amapá, em Santarém. Ele iniciou sua palestra com uma abordagem sobre o acesso à Educação Básica no Campo, que apresenta os seguintes percentuais de atendimento, de acordo com dados coletados pelo Censo Escolar INEP/2011 e Censo IBGE/2010: 6,98% Educação Infantil/Creche; 66,8%Educação Infantil/Pré-escola; 91,96% Ensino Fundamental; 18, 43% Ensino Médio; 4,34% EJA – Ensino Fundamental; 3,10% EJA- Ensino Médio. Um total de 6,3 milhões de matrículas estão disponibilizadas no campo, mas somente 12,4% do total de estudantes estão matriculados.
Para Renilton Cruz esse descompasso na Educação no campo é reflexo da história do Brasil, que “...sempre conviveu com gigantescos passivos em matéria de Educação, e os primeiros anos do século XXI ainda presenciam o analfabetismo, a escolarização insuficiente, a precarização do ensino.”
Ele diz ainda, que “...durante todo o século XX, as iniciativas estatais voltadas à educação da população rural estiveram sempre pautadas numa concepção de educação que percebia o campo como um espaço social economicamente atrasado, face ao processo de modernização do meio urbano desencadeado pala industrialização que se acelera a partir da década de 1930.”
Em seguida, o estudioso aponta os objetivos das ações do Estado com relação à Educação no meio rural:  conter a onda migratória, que embora servisse para fornecer força de trabalho barata para a indústria urbana, também ameaçava a estrutura social das metrópoles que se formavam desordenadamente. Preparação dos camponeses à integração subordinada da pequena produção agrícola aos novos rumos da agricultura capitalizada e qualificação minimamente necessária dos futuros proletários agrícolas para servirem ao capital que chegara com força nos mais distantes rincões do país.
Dando sequência a sua explanação, Renilton fala “Da educação rural à educação do campo: O protagonismo dos movimentos sociais”, enfatizando que a educação e a escola rural são frutos de uma concepção de campo como lugar atrasado, que contrasta com o avançado espaço urbano. Ele diz ainda, que mesmo existindo, geralmente, em instalações precárias e carente de recursos pedagógicos, a escola oferecida aos habitantes do campo se identifica(va) como uma instituição voltada para o progresso, para o desenvolvimento, fato pelo qual tinha (tem) na cultura urbana a sua referência para o ensino e o modelo para onde eram (são) projetadas as aspirações pessoais e profissionais dos estudantes.
Por conta disso, a formatação da escola rural não ocorre no espaço restrito do campo educacional, ela é resultado de um conjunto de circunstâncias econômicas, sociais e políticas que proporcionaram a construção de um dado modelo de desenvolvimento rural, que tem as seguintes características: alta concentração da propriedade da terra; subordinação da produção familiar ao capital: precarização do trabalho agrícola assalariado e elevado nível de pobreza dentre as famílias de pequenos proprietários.
Continuando, ele diz que “...a escola rural, ao legitimar a subalternidade econômica e cultural do campo, serve para fortalecer o modelo de desenvolvimento rural hegemônico. Em que pese os avanços em termos legais trazidos com a Constituição Federal de 1988 e com a LDB de 1996, as populações do campo continuaram desprovidas de políticas educacionais comprometidas com um desenvolvimento rural mais includente. Tendo em vista os reais interesses dos camponeses e seus movimentos, a concepção de educação rural que prevalece na ação do Estado é estruturalmente pobre e empobrecedora, politicamente desarticulada e desarticuladora e culturalmente desenraizada e desenraizadora.”
Renilton diz também que a história mostrou que esse modelo falhou profundamente, e as consequências sociais da negação do direito à educação de qualidade aos povos do campo são visíveis nas estatísticas que apontam os elevados índices de analfabetismo real e funcional no meio rural.
Além disso, os que conseguiram frequentar a escola rural por alguns anos, se depararam com uma instituição alienígena, alheia às experiências culturais dos estudantes e suas famílias, às questões econômicas e sociais que marcavam o campo, bem como totalmente distante das lutas e movimentos dos trabalhadores rurais. Os que, pela inexistência de escolas em suas comunidades, tiveram que frequentar as instituições urbanas, se sentiram, eles próprios, alienígenas, seres estranhos vindo de um mundo estigmatizado e desvalorizado socialmente.
Dando continuidade a palestra, o professor Renilton Cruz fala que a última década do século XX viu nascer um forte movimento popular disposto a recolocar no cenário nacional o tema da educação do trabalhadores e das trabalhadoras do campo. Sua origem, entretanto, está assentada nas lutas pelo acesso à terra, por melhores condições de produção e pela garantia de direitos sociais básicos travadas nas décadas anteriores pelos diversos movimentos sociais instalados no meio rural brasileiro.
O movimento por uma educação do campo tem buscado afirmar “[…] a necessidade de duas lutas combinadas: pela ampliação do direito à educação e à escolarização no campo; e pela construção de uma escola que esteja no campo, mas que também seja do campo” (SNPEBC, 2002: 18-19).
Tendo por finalidade romper com o conceito de educação rural e, consequentemente, com o projeto de desenvolvimento ao qual está subordinada, os movimentos sociais formatam o conceito de educação do campo. Há, por parte dos sujeitos sociais que adotam a nova nomenclatura, uma nítida demarcação ideológica que busca se colocar na contramão do desenvolvimento praticado no campo brasileiro, cuja escola rural serve de instrumento de legitimação.
No paradigma da educação do campo além de se buscar ultrapassar a relação dicotômica que existe entre o campo e a cidade, passando a percebê-los de forma integrada, “considera-se e respeita-se a existência de tempos e modos diferentes de ser, viver e produzir, contrariando a pretensa superioridade do urbano sobre o rural e admitindo variados modelos de organização da educação e da escola” (SECAD/MEC, 2007: 13).
Enquanto a educação rural configura-se em uma ação meramente compensatória, a educação do campo se reveste em uma ação emancipatória. A educação do campo: se identifica com a diversa e rica cultura dos povos do meio rural; caminha de mãos dadas com seu projeto de desenvolvimento endogenamente concebido; pensa a educação para além da escola, mas reconhece a importância desta no processo de construção da autonomia política e econômica dos sujeitos do campo; compreende a importância da educação no processo de emancipação que vem sendo gestado no campo, mas não lhe atribui ingenuamente uma força redentora, a partir da qual seriam solucionados todos os problemas ali vivenciados.
A educação do campo, portanto, tem lado, o dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, e tem consciência dos seus limites políticos e pedagógicos. A educação do campo se identifica com a classe trabalhadora do campo, o que significa que, reconhecendo a educação como um processo universal, seu projeto político e pedagógico privilegia os interesses desse grupo determinado, ou seja, compreende o universal a partir do particular. A educação do campo, dessa forma, “assume sua particularidade, que é o vínculo com sujeitos sociais concretos, e com um recorte específico de classe, mas sem deixar de considerar a dimensão da universalidade: antes (durante e depois) de tudo ela é educação, formação de seres humanos” (Caldart, 2004: 3).
De que campo estamos falando? – com esta indagação Renilton Cruz continua seu raciocínio. Para ele, a educação do campo, tratada como educação rural na legislação brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana.
A educação do campo nega a agricultura capitalista, pelo que ela representa no processo de exclusão dos povos do campo, ao mesmo tempo em que se afina com a reforma agrária, com a agricultura familiar camponesa, com a agroecologia de base popular. Além disso, propõe a construção de uma relação entre a cidade e o campo fundada na igualdade das condições sociais e na diversidade das práticas culturais e a educação deve se relacionar estreitamente com as demais políticas públicas direcionadas ao campo.
Em seguida o pesquisador trata da Educação do campo como direito. Ele defende que a educação do campo luta por uma educação como bem universal, direito de todas as pessoas, independentemente da localização geográfica de sua moradia ou de sua situação de classe, por isso luta pela implantação de políticas públicas que garantam aos povos do campo o direito a uma educação que respeite a sua cultura e o seu ambiente.
Cabe ao Estado cumprir seu dever constitucional de oferecer educação com qualidade aos moradores do campo através de políticas públicas. O problema a ser enfrentado não se resume à elevação do número de escolas construídas nos espaços rurais, mas principalmente ao estabelecimento de outras bases sobre as quais a aprendizagem será efetivada, onde se perceba que além de estar no campo a escola é verdadeiramente do campo.
Uma educação do campo carrega consigo uma forte identidade com os sujeitos que vivem e trabalham no campo. Por isso uma educação capaz de os fortalecer cada vez mais como sujeitos de seu próprio destino, deve ser do campo e não simplesmente no ou para o campo.
Trabalho e a Cultura e a educação do campo - O trabalho e a cultura foram os alimentos que nutriram a educação do campo durante o longo processo de sua gestação, e continuam sendo o mais importante alimento do seu projeto político e pedagógico.
No âmbito do trabalho, a educação do campo deve atentar aos processos produtivos que conformam hoje o ser trabalhador do campo, e participar do debate sobre as alternativas de trabalho e opções de projetos de desenvolvimento locais e regionais que podem devolver dignidade para as famílias e as comunidades camponesas. 
No que diz respeito à cultura, a educação do campo, através de ações pedagógicas escolares e não-escolares, atuaria como um instrumento de reforço às identidades dos povos que habitam e trabalham no meio rural, valorizando seu modo de ser, seus saberes, suas experiências, de modo a promover uma rica interação entre a cultura popular e o conhecimento cientificamente elaborado.
Para encerrar sua palestra, Renilton Cruz discorre ainda sobre os cinco tópicos seguintes:
O papel da escola - A educação buscada como direito de homens e mulheres do campo não deve se limitar às fronteiras da escola, todavia esta deve responder às necessidades daqueles sujeitos.
A escola que de fato contribuirá para a construção de um outro modelo de desenvolvimento no campo não será a escola urbanocentrada, precária e desconectada do seu meio envolvente, tão bem representada pela “escola rural” que tem marcado a história do campo brasileiro. A escola que verdadeiramente importa nesse processo precisa ser (re)construída a partir de um projeto político e pedagógico que atenda as demandas dos sujeitos sociais e seus movimentos, sem que isso signifique negar sua vocação universal.
“[…] a escola do campo tem que ser um lugar onde especialmente as crianças e os jovens possam sentir orgulho desta origem e deste destino; não porque enganados sobre os problemas que existem no campo, mas porque dispostos e preparados para enfrentá-los, coletivamente” (Caldart, 2002: 35).
O saber ensinado pela escola - A escola não estimula os estudantes a relacionar os conteúdos ensinados nas diversas disciplinas científicas com a prática do trabalho no campo.
Ao desconsiderar as práticas sociais e econômicas que movimentam a vida no campo, a escola contribui decisivamente para a desconstrução da identidade dos jovens estudantes, que não se reconhecem no conjunto de conhecimentos trabalhados pela escola, e ficam mais vulnerável aos apelos modernizantes que permeiam a prática escolar.
Uma escola que esteja disposta a reconhecer e valorizar os saberes e as práticas dos sujeitos do campo, sem os negar os conhecimentos historicamente construídos pela humanidade e imprescindíveis a uma compreensão nítida do funcionamento e das contradições da sociedade, precisa dar forma, cor, cheiro, sabor aos saberes que integram o seu currículo. É incontornável a materialização, a experimentação, a exemplificação dos conceitos científicos a partir de situações cotidianas, possibilitando uma real integração entre ciência, trabalho e cultura que seja capaz de formar um trabalhador de novo tipo, ao mesmo tempo político e produtivo, capaz de atuar intelectualmente e pensar praticamente.
Relação com as famílias e com as questões locais - Mesmo estando instalada no campo, servindo uma população que sobrevive basicamente da exploração agrícola, a escola não se envolve de forma mais direta nos problemas ali vivenciados, não funciona como catalisadora de um processo ativo de construção de alternativas econômicas e sociais que viabilize a revitalização da comunidade e fortaleça a identidade de seus habitantes. Portanto, mesmo fisicamente presente no campo, a escola não é do campo
Agir na defesa do espaço em que se encontra e do povo a que serve, não significa que a escola deva enclausurar a população do campo em suas próprias fronteiras ou mesmo defender um retorno ao passado, negando as mudanças tecnológicas e comportamentais ocorridas nas últimas décadas. Diferentemente, cabe a escola se utilizar das conquistas que a sociedade humana obteve no campo do conhecimento para incrementar sua estrutura curricular e municiar os(as) estudantes e a comunidade em geral com o instrumental teórico necessário à produção endógena de alternativas ao modelo de desenvolvimento atualmente implantado no meio rural.
Identificação docente com o campo - Maior será o envolvimento da escola com as questões locais quanto maior for a identificação dos seus profissionais docentes com a comunidade e com o seu meio ambiente.
Formação de Pofessores(as) - Historicamente, os cursos que formam professores(as) tiveram, e ainda têm, o sujeito urbano como modelo a ser perseguido pelo processo socializador da escola, fato pelo qual não se preocupa(m)ram com as evidentes particularidades culturais e econômicas vivenciadas pelas populações do campo.
As políticas públicas historicamente trataram de mandar profissionais ao campo para que extendessem seus conhecimentos à população que ali vivia, o que se realizava, quase sempre, através de ações precárias e, como é óbvio, sem qualquer vínculo cultural com a população a ser atendida. No setor da educação essa prática continua ativa, e a cada ano as escolas instaladas no campo são afetadas pela rotatividade e pela escassa ligação dos docentes urbanos com as comunidades locais. Entretanto, embora seja uma variável importante, não basta residir no campo para ser um docente identificado e comprometido com uma educação que contribua para um desenvolvimento que atenda aos interesses dos seus habitantes. A questão da identidade e do compromisso com o campo e sua gente por parte dos(as) profissionais da educação passa também pela formação inicial e continuada que recebem nos cursos que habilitam ao exercício do magistério.
Formados dentro de uma concepção de educação urbanocentrada adequada aos pressupostos da modernização e distantes das experiências pedagógicas gestadas pelos movimentos sociais, os(as) docentes tendem a reforçar uma visão de mundo que subordina o campo à cidade, condenando aquele à completa incorporação econômica e cultural por esta. Assentados(as) nessa compreensão do processo de desenvolvimento, os(as) professores(as) se convencem e contribuem para o convencimento dos(as) alunos(as) de que, na posse de um percurso escolar mais alargado, a busca por paragens urbanas constitui a melhor estratégia para conquista de uma vida melhor.

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